Amigo(a) leitor(a), é um choque na agenda econômica após o outro … mal dá tempo de “sacudir a poeira, após cada rasteira” …
Confesso que pretendia tratar de temas relacionados a inflação no Brasil – um dos principais assuntos da agenda econômica desse ano. No entanto, mudei a pauta, pois a “guerra comercial” tomou conta da mídia e preocupa governos, empresários, investidores e consumidores.
Peço paciência e lamento ter de apresentar alguns conceitos técnicos, mas isso vai ajudar a compreender com mais profundidade o que está em jogo nesse momento, suas causas e prováveis consequências.
Ao analisar e defender o liberalismo econômico, o economista britânico David Ricardo demonstrou que o comércio internacional sempre será vantajoso. Admita que a China, com o emprego de sua mão de obra, produza US$ 100 por hora do produto X e US$50 do produto Y por hora e que os EUA produzam apenas US$10 e US$20 por hora dos respectivos produtos. Claramente, a China é mais produtiva na produção dos dois bens.

Agora considere que a China decida se especializar na produção do bem Y. Ao fazer isso, perderá US$100/h na produção do bem X. Da mesma forma, se os EUA se especializarem na produção do bem X produzirá apenas US$10/h. Dessa forma, para gerar US$50/h na produção do bem Y, a China perde US$100/h na produção do bem X. Já os EUA perde US$20/h ao se especializar na produção de X. Dessa forma, China se beneficia ao produzir bem X e os EUA ao produzir o bem Y. Como resultado, China e EUA, assim como qualquer país se beneficiarão do comércio internacional tendendo a se especializar na produção de certos bens.
Ocorre que, além da lógica das vantagens do comércio internacional, tende a ocorrer a prevalência de interesses de grupos políticos e econômicos no seio de cada nação. O maior exemplo é o conhecido protecionismo praticado pelos países da zona do euro. Não é preciso ser especialista para compreender isso, basta ler os “jornais” …
Sabemos que o Brasil possui enorme vantagem comparativa na produção agrícola e pecuária e que há a expedição de inúmeras barreiras não tarifárias aos nossos produtos sob os mais diferentes pretextos; ou seja, sempre houve uma velada “guerra comercial”. Mudam as armas, mas essa sempre houve e não terminará com a atual “batalha”. Pouco se fala sobre a exploração do trabalho na China, México ou Venezuela … Mas vamos adiante.

Atualmente, o déficit do setor público dos EUA, diferença entre o que o governo arrecada e gasta, é de aproximadamente US$ 1,3 trilhão. As principais variáveis que contribuíram para o aumento desse incluem gastos elevados com plano de saúde (medicare), previdência social e, principalmente programas militares. Esse tipo de gasto do setor público americano está no cerne do plano econômico do atual governo americano – são bilhões de US$ em gatos. Na verdade, houve uma explosão do gasto público no governo Biden. Hoje se discute bilhões de US$ destinados á fins escusos: financiamento de “entidades ou órgãos não governamentais“. Órgãos públicos americanos e internacionais estão apurando. Acompanhe!
O problema é que o aumento contínuo do déficit e da dívida pública têm gerado preocupações sobre a sustentabilidade fiscal dos EUA, levando a necessidade de reformas econômicas para controlar os gastos e aumentar as receitas do governo americano.
Isso não é um privilégio da economia americana. No Brasil, a dívida pública cresceu cerca de 12% em 2024, alcançando cerca de R$7,3 trilhões. Importante destacar que a dívida pública é contraída pelo governo para financiar o déficit orçamentário, diferença entre o que o governo arrecada e gasta. Há 39 ministérios, muitos desses disfuncionais, e os gastos com não apenas com o poder executivo são colossais. Foi publicado que os gastos com o poder judiciário é maior que o da corte britânica … Já tratei em outros artigos dessa coluna: o setor produtivo privado é quem garante a geração de renda. O Estado não gera renda!
A elevação da dívida pública leva a elevação na taxa de juros (hoje a taxa básica de juros da economia brasileira, Selic, é de 14,25% a.a.), desvalorização cambial (esse ultrapassou R$5,90 nessa semana), crescimento medíocre do PIB (a previsão de crescimento é de míseros 2% em 2025 e que a dívida pública representa hoje mais de 76% do PIB) e aumento da inflação.

Em qualquer país, o crescimento insustentável da dívida pública compromete o espaço fiscal do país, ou seja, capacidade do governo usar política de gastos públicos como instrumentos de crescimento e desenvolvimento econômico, além de amplificar a percepção de risco do país e levar a uma necessidade de ajustes fiscais mais rigorosos no futuro; ou seja, maior esforço nos cortes de gastos do setor público, minando a capacidade do setor público de implementar programas econômicos e sociais parta atender demandas específicas.
A elevação dos impostos de importação pelos EUA visa a proteção de sua indústria. Trata-se de resposta à práticas comerciais consideradas “injustas” e também funciona como instrumento de pressão geopolítica. O protecionismo econômico tem como objetivo levar a sustentabilidade das empresas e empregos americanos ante a concorrência externa, especialmente quando produtos estrangeiros são mais baratos e ameaçam a produção local.
Ao elevar os impostos de importação, os produtos estrangeiros ficam mais caros, o que favorece os produtos fabricados nos EUA. Muitos produtos consumidos nos EUA e no Brasil, são fabricados com salários de “arroz ou lentilha”. O “trabalhador” recebe um salário pago pela “cesta básica de seu país”. Há uma anedota que diz que “se paga um prato de lentilha por dia para um programador baseado na Índia … esse produz ao custo de pratos de lentilha (sic)”.

Por outro lado, os EUA frequentemente têm um déficit comercial elevado, ou seja, importam mais do que exportam. Tarifas mais altas podem ser usadas para tentar reduzir esse desequilíbrio, incentivando o consumo de produtos nacionais. Obviamente, baseadas em um acordo bilateral justo.
Tarifas de importação também são empregadas como instrumento de pressão política. Os EUA podem aumentar impostos sobre produtos de um país específico para responder a: barreiras comerciais impostas por esse país; práticas consideradas desleais, como subsídios excessivos ou uso indevido de direitos de propriedade industrial; alcance de interesses de segurança nacional ou de busca de garantia de direitos humanos; estímulo a produção interna em setores estratégicos (tecnologia, produção e uso de energia), incentivando empresas a desenvolverem e produzirem no país.
Há um conceito que usamos em economia denominado déficits gêmeos: (1) déficit fiscal e (2) déficits em transações correntes. Vejamos. O primeiro ocorre quando o governo gasta mais do que arrecada em impostos, gerando necessidade de endividamento; o segundo ocorre quando um país importa mais bens, serviços e capitais do que exporta, gerando uma saída líquida de recursos para o exterior. Hoje a China possui um superávit comercial de mais de US$300 bilhões com os EUA.
Os EUA frequentemente apresentam ambos os déficits. Assim esse país, o Brasil emprega massivamente serviços de transporte marítimo da China; essa exporta muito e domina os serviços de transporte de carga marítima mundial (navegação de longo curso). Isso geralmente representa uma vulnerabilidade comercial e financeira. A questão que surge é a seguinte: quando os déficits gêmeos se tornam um problema?

Quando os déficits gêmeos tendem a crescer os investidores estrangeiros perdem a confiança de investir no mercado de capitais, conduzindo a desvalorização da moeda; levam os juros para atrair capital externo, prejudicando o crescimento econômico; aumentam o endividamento do setor público e pressionam o orçamento público. É exatamente isso que está ocorrendo no Brasil. Mais ainda: independente das medidas de Trump, tudo isso também já estava ocorrendo no Brasil.
É um tema sensível, mas as medidas tomadas pelo governo Trump colocam em xeque o Organização Mundial de Comércio (OMC). Cada país é soberano e deve ser capaz de buscar a realização de acordos bilaterais de comércio. Assim como os EUA, todos países e blocos econômicos deverão de se reposicionar, buscando um equilíbrio em suas relações comerciais. As negociações devem conduzir a um jogo de “ganha-ganha” … “meu país tem condição de ofertar os produto A, B, C ou D em melhores condições que o seu e o seu os produtos E, F, G e H“
O Brasil possui diversas vantagens comparativas nas áreas do agronegócio, mineral e em diversas atividades de produção de semimanufaturados e manufaturados. Também possui mais de 7 mil quilômetros de costa e pujante comércio internacional, mas ainda é dependente de serviços de transporte de empresas estrangeiras, majoritariamente chinesas.
Embora pareça, “não é um terremoto”. O governo americano fez uma moratória para renegociar as tarifas comerciais com cerca de 75 nações, embora ainda haja tensões e impasses com a China. Finalmente, esse realinhamento no comércio internacional pode, se o governo brasileiro fizer um bom trabalho, nos recolocar em boas condições no xadrez das vantagens do crescimento por meio comércio internacional.
Vamos acompanhar …

Marcello Muniz é economista e mestre em Engenharia pela USP. Com 20 anos de experiência profissional, é perito judicial, atua como Analista de Negócios junto à Data Science Business Management (DBSM) e é professor de Economia junto à Unifaccamp (de Campo Limpo Paulista) e Faculdade Impacta de Tecnologia (FIT).
Atuou como pesquisador da Divisão de Economia e Engenharia de Sistemas do IPT (DEES), consultor do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e Analista de Projetos da Fiesp.
Apaixonado por temas relacionados a políticas públicas e economia, autor do livro Matemática para Economia (Ser Educacional), participou na qualidade de coautor de 13 livros, entre esses: Política Industrial (Jornal Valor Econômico), Outward FDI from Brazil and its policy context (Vale Columbia Center on Sustainable International Investment), Gestão da Inovação no Setor de Telecomunicações (Fapesp) e Ressurgimento da indústria naval no Brasil (projeto-Ipea-BID).