Da redação: Luana Gasparetto e Jéssica Lima
Pela necessidade de inovação e maior sustentabilidade financeira, Terceiro Setor adere ao empreendimento social
Desde a redemocratização do país em 1985, o Terceiro Setor vem ganhando cada vez mais espaço na sociedade. Milhões de pessoas estão envolvidas de algum modo com essa área. Segundo o Mapa das OSCs, o Brasil tem mais de 815 mil organizações sociais de diversos ramos. Suas atividades estão alinhadas a um ou mais Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 da ONU – conjunto de metas que visam um mundo mais justo e igualitário.
Para a sustentabilidade da organização, essas pessoas recorrem a soluções como o empreendimento social, já conhecido pela sociedade, mas que ainda gera algumas dúvidas, como a questão das receitas geradas. As ONGs utilizam essas receitas para inovar no projeto, realizar reinvestimentos e como capital de giro. Com a oferta de produtos, serviços e a participação de colaboradores remunerados ou voluntários, podem destinar parte de suas receitas para os públicos que atendem. “Colaboradores e fornecedores são remunerados pelo projeto e eventuais necessidades financeiras são cobertos pela ONG, com recursos próprios ou captações pontuais de recursos junto a empresas e governo“, Gianmarco Bisaglia – dirigente da MaterDei ao contar como funciona a ONG, localizada em Atibaia-SP.
A Mater Dei atua com projetos e empreendimentos sociais, “principalmente no atendimento de mulheres e jovens, na garantia de direitos e inserção social e profissional, trabalhando para a formação de pessoas mais conscientes da sua trajetória pessoal e comunitária” – segundo apresentação da própria instituição em seu site oficial. Bisaglia conta como foi possível enxergar possibilidade de diversificação: “Já estávamos exercitando produção a partir de nossos programas de qualificação profissional. Tivemos a primeira experiência em 2017, colocando nosso espaço de aulas de beleza a operar como salão aberto ao público, procurando integrar nossas formandas a experiências reais de trabalho. Em 2018 foi inaugurado o Café Dalí, espaço gastronômico; e em 2020 abrimos o Espaço Mater e o bazar de reforma de móveis e utensílios“.
Esses empreendimentos funcionam como uma parceria entre o Terceiro Setor – composto pelas organizações não governamentais (ONGs, sem fins lucrativos) e empreendimentos com fins lucrativos, mas com o mesmo objetivo -, o Segundo Setor (composto pelo mercado) e o Primeiro Setor (representado pelo poder público). A organização desses empreendimentos pode ser feita como filiais com CNPJ próprios, o que facilita a administração.
Há outras ONGs que possuem mais de um empreendimento, como a Mater Dei, e para elas Gianm alerta: “empreender com vários projetos e negócios ao mesmo tempo pode ser complexo e arriscado em uma organização de porte médio como a nossa. A previsão de investimentos e capital de giro inicial deve ser como em qualquer novo empreendimento – privado ou não. Foi um pouco frustrante perceber que não dá certo operar como espaço de aprendizagem e foco mercantil ao mesmo tempo. Clientes demandam qualidade, atendimento e preço – o que nem sempre conseguimos quando parte da equipe está em formação. Clientes também relacionavam demais o espírito de ONG ao negócio, gerando dúvidas sobre a qualidade dos produtos e serviços, ou a falsa crença de que uma ONG deve necessariamente oferecer coisas gratuitamente ou a baixo preço.“
O Terceiro Setor é vitima de estigmas da sociedade, e por vezes visto com pouca credibilidade. Uma boa administração e planejamento são pontos positivos para reverter esse pensamento. Um exemplo é a crença de que uma ONG não pode gerar receita – o que é um equivoco, já que existem diversas organizações sem fins lucrativos que geram milhões em receitas com a prestação de serviços, como a Beneficência Portuguesa e o Centro de Integração Empresa-Escola (CIEE), cujos valores gerados são destinados a manutenções e necessidades das mesmas.
O controle social é buscado por meio de participações dos conselhos de garantia de direitos, que atuam nos três níveis de governo. Bisaglia comenta: “As ONGs devem melhorar sua capacidade de captar recursos, monitorando e participando de editais com bons projetos, e compreendendo os diversos mecanismos de utilização de verbas públicas“. É comum encontrar ONGS atuando onde o Estado não consegue gerar soluções para os problemas sociais e ambientais. “Para cumprir esta missão, as ONGs precisam se profissionalizar, com equipes profissionais e um consistente projeto de captação de recursos” completa Gianm.
Levando em conta a participação do poder público (Segundo Setor), este deve ter foco de empresa-cidadã, ou seja, contribuindo com recursos que podem favorecer as ações das ONGs, além da divulgação delas. A discussão e o engajamento ao conceito de ESG estão se intensificando no Segundo Setor, como afirma Bisaglia: “A tendência é termos mais interesse e participação do setor produtivo nas causas de interesse da sociedade, investimentos canalizados muitas vezes por meio de ONGs. Nos últimos anos tivemos parcerias em projetos apoiados pela AMBEV, Mercado Livre e BASF, por exemplo“.
Outro exemplo é a rede Gerando Falcões, um ecossistema de desenvolvimento social que nasceu e atua nas favelas do País. Considerada vanguarda do empreendedorismo social no Brasil, desde o início utiliza tecnologia de forma gratuita para levar sua mensagem adiante. Conta com grandes empresas atuando como investidores e apoiadores sociais – entre elas a Microsoft, Hershey’s e Grupo Globo.
O dia a dia de uma organização voltada para o empreendimento social demanda tempo, atenção, riscos e monitoramento, para que gere mais renda do que trabalho. Alguns desafios enfrentados são a falta de transparência na prestação de contas dos recursos repassados, além da falta de inovação para a busca de credibilidade e interesse público. Mas talvez um dos maiores desafios seja a busca por sustentabilidade financeira e da visão social/ambiental – já que ainda existe certo excesso de burocracia por parte do poder público e a necessidade de muitos recursos que a grande maioria das organizações enfrenta para garantir a sua sobrevivência.
Ao iniciar suas atividades, a Mater Dei enfrentou alguns desses desafios, como comenta Bisaglia: “Inicialmente a preocupação foi o enquadramento legal dos empreendimentos, para que operassem dentro do guarda-chuva da ONG, que conta com benefícios tributários, revertidos 100% para a organização e reinvestidos para consecução do objeto social.“
Como vantagem dos múltiplos empreendimentos, Bisaglia pontua: “Ter receita permanente vinda de diversas fontes próprias. Nossos empreendimentos dialogam com os nossos objetivos institucionais, uma vez que realizamos diversas ações culturais gratuitas em nossa cafeteria e na loja. E também temos realizado parcerias com empreendedores e grupos produtivos na costura, artesanato e ramo da beleza“.
Para o futuro, como qualquer segmento, o Terceiro Setor também deve se reinventar, migrando progressivamwnte para o digital. Essa mudança, além de viabilizar ações, pode também favorecer muito a transparência. Para Bisaglia, em um futuro próximo, atendimentos serão realizados por meio de celulares: “O celular é o local de atendimento, as organizações mais lúcidas estão atentas a este movimento procurando ajustar-se a este futuro concebido, mas ainda não realizado“. Apesar dos benefícios, se mal administrada, essa migração pode trazer inseguranças e novos riscos para a organização, gerando receios com essa nova forma de atuação. Portanto, assim como já acontece com as empresas privadas, a inserção de uma organização do Terceiro Setor no mundo digital exige adaptações e modificações. É preciso ter entendimento desse “novo mundo” e uma visão gerencial. Atualmente, qualquer organização – da pequena à grande – pode utilizar a tecnologia a seu favor para aumentar seu impacto social, melhorar seu desempenho e viabilidade econômica.