*Por: Gianmarco Bisaglia
Quando nascemos e crescemos numa cidade alucinante como São Paulo, nos intoxicamos de tudo que ela oferece, na riqueza e na pobreza, do ócio ao burnout, do saudável ao vício…
Nasci nos anos 60 na Liberdade – ia com minha avó ou minha mãe comprar pão na Santa Tereza, na praça João Mendes, em frente ao ponto de bonde e trens elétricos, esticando às vezes até o viaduto Maria Paula para ver as obras de construção da Av. 23 de maio; da varanda do nosso apartamento na Rua dos Estudantes, eu vi a construção do metrô transformar a bonita Praça da Liberdade onde aprendi a andar de bicicleta com meu avô Remo – praça que tem esse nome pois abrigava nos séculos XVIII e XIX, a forca e um cemitério da cidade… Na Igreja dos Enforcados (não por dívidas, enforcados de verdade…), tive minhas primeiras vivências no catolicismo, assombrado pelo horroroso velário que me dava o tom de uma religião pesada, opressora, triste… para não voltar!
Na Liberdade tive o incrível o contato com a cultura japonesa, do mandiopan, manju, guiozá do Kushimoto, e o Lámen ou sukiyaki do restaurante do Amigo, próximo ao Largo da Pólvora, dos saudosos Satiko e Paulinho-San. Ou do Kyoto, na rua da Glória, um karaokê acompanhado por músicos ao vivo, e dos filmes japoneses em 3D no Cine Jóia. Demais.
Cresci no Jardim da Saúde, onde as aventuras eram pegar rã no brejo que seria futuramente o complexo Maria Maluf, invadir o ferro-velho do Detran, driblando cachorros e vigias, empinar pipa, fazer carrinho de rolimã, futebol de rua, realizar jornadas de bicicleta pela Av. Cursino até o zoológico ou subir a Vergueiro até o Regina Mundi na Via Anchieta, onde estudavam as amigas dos primeiros bailinhos. Nessa época também costumávamos ir nas matinês domingueiras da Sinfônica do Estado no Teatro Municipal, ouvir artistas do calibre de Sônia Muniz, Jacques Klein, Nelson Freire sob a batuta de Eleazar de Carvalho ou Diogo Pacheco.
Minha família italiana me proporcionou verdadeira pedagogia cultural-gastronômica, em “experiências” como o Barila do Brás, Gigetto, Giovani Bruno, Orvietto, Piollin, a feijoada do Ferrus Bar, o Carlino (fundado no século XIX), um pintado no Carré, o Filé do Morais, o bistecão do Mester, o puchero do Fuentes, o Trastevere, o churrasco chic do antigo Eduardo’s, acarajés da feira da Praça da República, sem contar as pizzas da Urca, Moraes ou Silvestre, a truta do Windhuk e os canapês do John Sehn, ou as massas do Gato que Ri no Largo do Arouche, onde nosso velho amigo Morishi jurava ter composto a letra de “Viagem” num fim de noite junto com Paulo César Pinheiro – cada viagem!!
Quando criança ia com meu pai à Praça Roosevelt, de arquitetura de gosto duvidoso, onde assisti pela primeira vez a divertidíssima Inezita Barroso, com quem muitas vezes, anos depois, tive a oportunidade de almoçar ou jantar no Parreirinha, onde ela tinha uma mesa cativa, na mesma rua do Boi na Brasa (acho que era esse o nome), onde conheci, já velhinho, Adoniran Barbosa. Estudei no Dante Alighieri, onde vivi o mundo irreal da classe A paulistana, e da emergente Avenida Paulista, transitando dos casarões do baronato do café para ser na época a Wall Street brasileira – frequentava o Masp (onde se entrava de graça), corria dos trombadinhas do Parque Trianon, ia ao Center Três ou Conjunto Nacional, onde muito namorei naqueles cinemas e muitos livros comprei na Livraria Cultura. Nessa época eu estudava piano e ia de ônibus ao Instituto Musical de São Paulo, da saudosa Professora Neide Gomes, que ficava no Glicério, de onde muitas vezes saímos correndo da aula para evitar as enchentes inevitáveis da várzea do Tamanduateí.
Em idade mais “boêmia”, as noites do centro podiam começar com chopp no Amigo Leal ou no London Tavern, comer batata rosti no Lollita do querido Werner, emendar no Biroska, no Som de Cristal, ou no inusitado Bosque de Viena, bar decadente dos anos 40, onde aprendi muita música com refugiados latino-americanos que lá frequentavam. A noite fechava na Av. Ipiranga, comendo buraco quente (carne moída no pão, para os desavisados…), ou pernil no Bar Avenida, um bauru no Ponto Chic ou um capelleti no La Farina, cantina que só fechava 6 da manhã!
E como esquecer o antigo Bar Brahma e seu piano bar dos anos 40, local de levar amantes para um fim de tarde suspeito, ou do velho restaurante onde assisti Jair Rodrigues, Luciana Mello, Roberto Luna e Cauby Peixoto, espaço revitalizado pelo amigo Álvaro no fim dos anos 80. Mas haviam outros bares: o Riviera na Consolação, reduto de pessoal de teatro e da esquerda clandestina durante a ditadura; ou o Redondo, bar de militância estudantil e comunidade gay, que organizava um divertidíssimo bloco de carnaval. O Sujinho original de uma Vila Madalena alternativa e sem o glamour dos bares da moda… ou o outro Sujinho, da Consolação, dignamente chamado de bar das putas, um pouco acima da famosa casa da Tia Olga, onde muitos ilustres paulistanos deixaram sua virgindade.
Nesse centro trabalhei como bancário e office boy, aprendendo o labirinto de ruas e seus segredos – ali aprendi a gostar de cinema em tardes bem passadas nos Cines Marabá, Paissandu, Olido ou Copan, assustado com Alien – o Oitavo Passageiro ou O Exorcista, ou encantado com Emanuelle e o Último Tango em Paris (este proibido por anos pela censura moralista do governo Médici-Geisel)… ou vibrando com Tubarão ou Star Wars dos então desconhecidos Spielberg e George Lucas.
Já na faculdade, no Largo São Francisco, saudades dos lanches de linguiça bragantina da Casa Califórnia, do Café da Sogra, comer pastel na praça da Sé (onde em 84 estive na manifestação das Diretas Já!), das terças de samba e seresta do bar Senador, onde conheci o compositor Jorge Costa, Luís Felipe, Breno do Valle, Mário Makumba, músicos que forjaram minha alma sambista, sem falar nas escapadas das aulas de sexta-feira, onde levava a turma para o Paulistano da Glória, uma das últimas gafieiras da São Paulo antiga.
Para mais glamour, um docinho na Brunella, um blues no Urso Branco, pizza frita no Mistinguetti, uma baladinha na Banana Power na São Gabriel, assistir Zeca Pagodinho adolescente no Villa, ou uma noite no Gouveia, restaurante saído da Praça da Sé para a Av. Santo Amaro, com o melhor filé mignon parmegiana de molho branco que já comi, ao som de boleros do amigo Zé Rosa, músico da casa.
E como não falar do meu querido Bixiga onde morei e toquei pela primeira vez na noite, aos 16 ou 17 anos no finado Old’s Bar. Frequentava o Café Society, Persona, Café do Bexiga, estive na inauguração do Piu-Piu onde assisti a Tradicional Jazz Band do incrível Tito, pai de minha querida amiga Renata Martino! Bixiga dos ensaios da Vai-Vai, da Festa da Achiropita, das rodas do grupo Madeira de Lei, e do querido Raimundo servindo delícias e muita cachaça no Rancho Nordestino. O Bixiga do teatro Maria Della Costa, onde fui criança assistir Vinícius, Toquinho e Marilia Medalha em show memorável, onde vi Raul Cortes e Everton de Castro soberanos em “Amadeus”, do TBC, Cultura Artística e do Teatro de Arena, onde Zé Celso, Rosi Campos, Marilia Pera, Cacá Rosset, Paulo Autran, Ney Latorraca e muitos outros nos honraram com seu talento!
Costumava ir com minha tia comprar tecido no Brás ou na 25 de Março, que assim como a Santa Ifigênia já eram o que são hoje – polos comerciais de lojas, camelôs e muitas ilegalidades – contrabando rolando solto também ao lado da rodoviária velha de São Paulo na Av. Rio Branco, uma prédio coberto de estranhas placas acrílicas multicoloridas que faziam uma bolha intoxicante de monóxido de carbono e diesel, um caos de gente e pouca sinalização, que tornava o ato de achar sua plataforma uma grande aventura, e entrar no ônibus certo um pequeno milagre!
E tinha futebol! Chegar no Morumbi era uma viagem sem fim, onde fui pela primeira vez aos 11 anos assistir à seleção brasileira de Rivelino e Leivinha no sesquicentenário da independência; lembrança dos jogos noturnos no Pacaembu, de fácil acesso e ingresso barato, ou frequentando o glorioso jardim suspenso do Parque Antártica daquele Palmeiras dos anos 70 que dava gosto de ver jogar. E como dava gosto o Bloco dos Esfarrapados no Bixiga, ou pular carnaval no Juventus, Clube Piratininga, Holms ou na Portuguesa!
A cidade muda rápido a ponto de nos tornamos estrangeiros dentro dela – aquela São Paulo não existe além da memória – bairros inteiros rasgados por novas avenidas, os velhos bares e teatros desaparecidos. Amigos que mudaram, morreram ou sumiram. Mas continua ali um espírito cosmopolita, tudo à disposição – a cultura, a vida política, a gastronomia, o futebol, a academia, patrimônios de uma cidade que palpita, que vibra, que ensina e que devora!
Parabéns São Paulo, com saudade!
Empreendedor social, consultor empresarial, educador e músico, pai da Mariana e cidadão de Atibaia. Possui mais de 40 anos de trajetória profissional transitada entre o meio corporativo e o terceiro setor. Atualmente é dirigente da ONG Mater Dei de Atibaia-SP e violonista do grupo Sentido do Samba.
🙂
Que biografia incrível! Faz com que sentíssemos parte de cada momento vivido, e isso é realmente fantástico!
Que possamos honrar as raízes da cidade tao fascinante . Que biografias como esta, que cada monumento e cada rosto que compõem esta metrópole nos lembrem eternamente da sua grandiosidade.
Parabens Sao Paulo!
Adorei texto e a incrível memória do Gianmarco.
Gostaria de lembrar a data do show do Vinicius e Toquinho no teatro Maria De Lá Costa.
Muito bom gosto.
Parabéns