Alguns “flashes” para aquecimento:
- Conheci em Portugal um empresário chamado Fernão, que contava sua trajetória curiosa – foi perseguido pelo governo de Salazar nos anos 60 por supostamente ser comunista – depois de alguns anos, montou uma indústria em Angola, que foi bombardeada durante a guerra civil por ele ser um empresário a serviço do capital…
- Recentemente ouvi de um amigo negro que eu não sabia o que era racismo, por que eu era branco. Fiquei pensando comigo se essa também não era uma forma de racismo, mas achei de bom senso largar a polêmica e manter o amigo…
- Tive um associado chamado Daniel, que era um tremendo guru de marketing em sua época – ele costumava se divertir ao dizer que tinha tudo para ser odiado: era judeu, argentino, irlandês, vegetariano e incrivelmente bom no que fazia…
Quando lidamos com a questão do preconceito, logo nos saltam suas facetas mais odiosas – o racismo, a homofobia, o machismo, a xenofobia, a intolerância religiosa; mas há outras formas de preconceito que passam veladas no dia a dia, às quais nenhum de nós se encontra imune. Hoje tomamos muito cuidado com nossas falas, pois a simples menção indicativa pode representar formas de preconceito – de fato o verbo “discriminar” tanto significa “diferenciar”, “classificar”, como também “marginalizar” ou “tratar injustamente”. Na retórica escrita ou falada, não há como saber a intenção, e às vezes as boas intenções de diferenciar muitas vezes são vistas com forte preconceito.
Sou branco, hétero, urbano, de classe média, e já passei há tempos da meia idade – esse perfil, por si só, pode gerar em pessoas que não me conheçam, um sinal de alerta: “olha aí um potencial machista, capitalista e opressor!” Na real, ter este perfil não agrega nenhuma forma de imunidade – já sofri várias formas de preconceito durante a vida – por ser jovem demais, por ser estrangeiro, por ser brasileiro, por ser paulistano, por ser visto como pobre no meio de ricos, ou ser visto como rico no meio de pobres, fui esnobado pelas minhas diferentes preferenciais musicais ou culturais, e tenho certeza que já ter sofrido gordofobia e etarismo…
Na adolescência é natural a nossa busca de identidade, onde nos identificamos com grupos/tribos e somos amados ou odiados por isso. Ao caminhar para a vida adulta podemos escolher ampliar nossa visão e inteligência ao exercitar a tolerância e o diálogo, empaticamente indo onde nunca antes estivemos!
Nossa origem, nossa formação, nossas crenças são parte do que somos – podemos ter orgulho de nosso passado, da identidade construída, mas isso não nos faz melhores que ninguém. Nossa identidade não nos dá o direito de discriminar o outro ao comparar as diferenças – “você não é o que eu sou, logo, sou melhor que você”… lembro dos relatos de quem trabalhou com crianças bem pequenas, do menininho que vê a menininha pelada pela primeira vez, descobre as evidentes diferenças, vai lá e puxa o cabelo dela!
Preconceitos ocupam o espaço onde se ancora nossa incapacidade em compreender e aceitar o outro – mas nossa inteligência só aumenta na proporção em que interagimos com nossos semelhantes (obrigado Paulo Freire!)… nossa civilização infelizmente criou fraturas em nossa natureza humana, universal e divina! Criamos moralismos políticos, religiosos, étnicos, sexuais, para defender nossos pobres espaços de poder, longe da ética e de qualquer forma de espiritualidade. Todos perdemos com isso!
- Países extremamente machistas que impedem mulheres de estudar, trabalhar e participar da vida política, perdem 50% da força e potencial criativo – o quanto isso não impacta na competitividade de uma nação?
- Quanto custará ao planeta a reconstrução da geopolítica do oriente médio ao término (se houver) do milenar conflito árabe-israelense?
- Como vamos lidar com o poder de grupos que unem evangélicos, milicianos e traficantes para extorquir comunidades, perseguir umbandistas, subverter a ordem legal e se colocar acima do Estado?
- Como vamos acolher e integrar em nosso mundo os autistas, os psicóticos, os moradores de rua, os depressivos, os desvalidos, os enfermos, os “nóias”, os rejeitados por todos, no bloco do sanatório geral que vai passar?
Num momento em que a tecnologia coloca o mundo cada vez mais dentro de nossas casas, cabem reflexões profundas sobre nossas crenças, nossos preconceitos e a forma hipócrita como a nossa sociedade trata questões tão sérias e tão profundas.
Quando procuramos de fato enxergar e compreender o outro, abrimos uma oportunidade rara de perceber nossas próprias qualidades ou limitações – estas talvez, origem talvez de nossos próprios preconceitos… como diria o personagem Salieri da peça “Amadeus” de Peter Shafer: “Eu pedi a Deus o dom de criar melodias maravilhosas para alcançar a divindade, e Deus me presenteou com ouvidos perfeitos para perceber que tudo que eu faço é medíocre”.
A realização do ser humano transcende muito as formas das cascas com que viemos a esse mundo – não importa a família onde nascemos, ou os lugares onde nos criamos. Pouco importa se o Deus que você acredita é mais ou menos moreno, ou tem olhos puxados. A quem interessa a marca do seu carro, o tamanho da sua casa, quantos zeros tem sua conta bancária, o seu sobrenome chic ou suas opções sexuais. Somos todos seres espirituais em uma experiência terrena – nossas vaidades, egos, ideologias, dogmas e moralismos morrerão conosco, exatamente como diz Billy Blanco: “…afinal, todo mundo é igual, quando o tombo termina, é terra por cima, na horizontal!”
Ouvi dizer que os problemas do mundo começaram quando as zebras de listras brancas começaram a odiar as zebras de listras pretas… será?
Empreendedor social, consultor empresarial, educador e músico, pai da Mariana e cidadão de Atibaia. Possui mais de 40 anos de trajetória profissional transitada entre o meio corporativo e o terceiro setor. Atualmente é dirigente da ONG Mater Dei de Atibaia-SP e violonista do grupo Sentido do Samba.
Sou privilegiada por ter conhecido você, meu amigo!
Assino embaixo do seu texto impecável (como sempre), pois não tenho esse seu dom da escrita !
Obrigada pela clareza, transparência e caráter ao tratar desse tema !
É meu amigo, vc que é sambista, não pode cantar muitos sambas antigos… Parabéns pelo artigo.
Reflexão primorosa e verdadeira. Não conhecia esse seu talento de escritor, mas , considerando seu talento como músico já dava pra avaliar as qualidades artísticas .
O tema é forte e atual, verdades incontestáveis vc mencionou com clareza e diria tb com delicadeza. Grata pela oportunidade de saborear esse seu talento.
Parabéns pelos seus textos… As grandes virtudes dos mesmos, a meu ver, é claro, são você se abrir ao discorrer sobre temas complexos e profundos, buscando o fazer pensar sobre os mesmos e não exercitar o ego, arriscando criar e impor suas conclusões sobre os mesmos…