Eu saída minha terra por ter sina viageira
Cum dois meses de viagem eu vivi uma vida inteira
Sai bravo, cheguei manso, macho da mesma maneira

Estrada foi boa mestra, me deu lição verdadeira
Coragem num tá no grito, e nem riqueza na algibeira
E os pecado de domingo, quem paga é segunda-feira
(Paulo Vanzolini)

Comprei a minha primeira moto em 1983, uma Honda XL 250 – eu não sabia pilotar, nem tinha habilitação, mas muito rapidamente conheci a delícia e os riscos de ser um motociclista na cidade de São Paulo – com a sensação de autonomia e liberdade (que só um motociclista raiz experimenta), vem a responsabilidade de cuidar de si e dos outros com quem interagem num trânsito feroz uma cidade grande. Quatro anos depois me lancei numa viagem pelo continente europeu, desta vez com uma Honda CB 400 82, fabricação japonesa – comprada com 500 libras de alguns meses de trabalho suado.

Apesar das previsões fatalistas do meu amigo Tó Moreira, parti de Londres no final de maio de 1987 – numa manhã nublada (que novidade…), destino Holanda. Muita vontade, desejo e determinação, pouco planejamento, dinheiro e juízo. Mas assim é que transformamos as coisas. Passados quase 40 anos, quero repartir o que aprendi naquela jornada de dois meses!

1. Tudo é possível quando o sonho é intenso.

A viagem já estava desenhada no imaginário desde a adolescência – era só viabilizar o como e assumir os riscos – viajar sozinho, sem muitos recursos, com uma moto usada e poucos equipamentos… se eu tivesse ouvido a voz da razão, jamais teria acelerado e saído das vias de mão trocada da Inglaterra.

2. Administrar escassez demanda mais racionalidade e algumas renúncias

Precisei administrar roteiros, escalas, contatos, hospedagens, alimentação, combustível, manutenção, pedágios, câmbio (ainda não havia $Euros), duração das etapas e de toda viagem – tratava-se de esticar o dinheiro para viajar o máximo de tempo e concluir a viagem em Portugal, onde o dinheiro acabaria, mas minha rede de apoio era maior! Com isto abri mão de alguns destinos – cortei a Bélgica, passei reto por Munique, Marselha, Napoli, viajei sempre por estradas vicinais, sem pedágio, em velocidade ideal para não forçar a moto e curtir a paisagem.

3. Informação e rede de contatos é tudo

Pesquisando sobre os lugares, ativando velhos conhecidos e amigos, e com muita cara de pau, fui construindo a jornada, conhecendo gente, aprendendo e compartilhando. Muita hospedagem, comida e ajuda de velhos e novos amigos nos 8 países percorridos, trouxeram a sensação que nunca estive de fato sozinho na viagem.

4. Mesmo planejando, as coisas podem falhar

Um endereço errado em Karlsruhe, um amigo com apendicite em Pamplona, uma amiga que mudou de telefone em Massa, geraram imprevistos nas estadias – nas impossibilidades de hospedagem econômica, dormi em estações de trem, cabines de banho na praia, bancos de praça (era verão, ok?), cabanas de caça e outros lugares inóspitos. E tive a moto furtada (e posteriormente encontrada) em Haia!

5. Quando não planejamos, às vezes recebemos

Desviei meu roteiro para a Dinamarca para visitar um amigo paulistano que havia se casado – cheguei de surpresa uma noite com champagne e chocolates, recebido com carinho e muita cerveja na charmosa Copenhagen; em Milão fiquei uma semana no studio de uma amiga do amigo de um amigo, só cuidando da limpeza e do gato… em Roma, conheci a cidade com um arquiteto italiano especializado em patrimônio, primo de um antigo correspondente de meu avô, e fiquei quase 24 horas num almoço de aldeia em Seia, norte da Espanha com a família de minha amiga Ester, só porque eu era brasileiro! Sem contar minha visita e estadia em Berlim, que relatei no artigo LIBERDADE E DEMOCRACIA, aqui publicado. Maravilhosos momentos não planejados!

6. Imprevistos acontecem quando distraímos!

Tive uma queda na estrada porque me confundi querendo ver a sinalização e consultar o mapa ao mesmo tempo – duas semanas de luxação no pulso! Ao não consultar os avisos de tempo, avancei por uma estrada na Suíça para encontrar uma nevasca que fechou a passagem a caminho da Itália – sem posto de gasolina, retornei na banguela serra abaixo, com chuva e neve… e levei uma multa na Alemanha por estar 4 km acima do limite. Racionalidade do policial alemão nunca deve ser colocada à prova!

7. Não importa o tamanho do problema, curta a viagem!

Nem sempre as coisas são ideais – minha família na Itália me recebeu e tratou com muita indiferença, mas não deixei de curtir a região de Garda, Verona e Veneza com outros parceiros de viagem. Precisei andar dois dias com o cabo da embreagem acionado por uma chave de fenda, mas finalizei a inacreditável travessia pelos Alpes a caminho da Itália, e apesar das dores do pulso machucado, curti cada minuto da companhia da amiga Renata Martino na Berna dos trens e ônibus irritantemente pontuais. Sem hospedagem e dormindo na praça, não deixei de curtir o San Fermines em Pamplona, incluindo a insensatez de correr com os touros nas ruas fechadas com barricadas (haja vinho!).

8. Aguce a sua percepção!

O tato para conhecer a irregularidade orgânica dos azulejos de Gaudi e seu fantástico Parque Guell em Barcelona, a grossa areia de Laredo ou o beijo doce dos amores eventuais; os ouvidos ouriçados pelos cascos dos touros e gritos nos encierros de Pamplona (ou do palio de Siena), ou por um grupo gitano na Rambla; os aromas dos enfumaçados bares de Amsterdam ou de uma típica bodega milanesa; os olhos maravilhados pelas vindimas do Vale do Reno, pelas pinturas do museo Van Gogh ou do Prado, o fog do Canal da Mancha ou pelo inusitado desfile dos atletas gigantes do calccio fiorentino; o paladar das cervejas artesanais na Alemanha, das tapas em Madrid, e das muitas refeições caseiras em todas casas que me hospedaram. E claro, o principal, nossa intuição e empatia ampliadas, a reconhecer em cada olhar amigo uma ponte de afeto e cumplicidade!

9. Viva a liberdade do momento

Não lembro se na Holanda ou Alemanha deparei com uma bifurcação na estrada, sem sinalização – minha mente se divertiu com a ideia que qualquer caminho valeria a pena, porque a viagem era de descobertas! Poucas vezes na vida senti uma sensação de liberdade e prazer na aventura, e uma certeza intuitiva tão intensa como naquela ocasião.

10. Celebrando a chegada

Saindo de Madrid, um tiro de 600 km – enveredei em Portugal pelo Alentejo das paisagens áridas e dos trejeitos mouros. Uma chuva fina irritante me molhando até os ossos, apontei a moto na ponte 25 de abril – no meio do vasto Tejo, um sol inesperado iluminou a Lisboa à minha frente, a lembrar que toda tormenta passa e trazendo a certeza que eu ficaria muito tempo naquele país. Eu havia realizado sem saber meu rito de passagem da adolescência para a vida adulta!

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