Semana passada, na boa prática de filosofia de boteco, ouvi duas pérolas:

Dizia o primeiro filósofo: “Quem falou em crise, qual crise? – Vai no shopping, que está tudo lotado! Não tem crise…”

Responde o segundo filósofo: “No shopping não tem crise, mas vai no Bronx para ver.”

O IBGE vem nesta semana reforçar a tese do segundo filósofo – a população brasileira atinge o menor poder aquisitivo em 10 anos. O mais impressionante – os 5% mais pobres do país (falamos de mais de 11 milhões de pessoas) sobrevivem com menos de $ 40,00 por dia. E o 1% dos mais ricos ganha em média 38 vezes a mais que a média dos 50% mais pobres. Mas estes não moram no Bronx.

Nos anos 60 e 70 o bairro nova-iorquino do Bronx virou sinônimo de exclusão, violência e criminalidade. Gueto de imigrantes latinos e negros, onde nem a polícia entrava. Pessoas expelidas aos poucos da bela e rica Manhattan, sem emprego, sem educação de qualidade, sem perspectivas e sem futuro. Na mesma época, o sambista Jorge Costa cantava por aqui: “em cada canto da cidade tem uma favela, que não tem riqueza, nem beleza também”.

Obra: Abandono-Goeldi

O Bronx americano mudou muito: investimentos em educação, segurança, cidadania e infraestrutura urbana asseguram qualidade de vida para dezenas de bairros e comunidades periféricas de Nova Iorque. Ainda há exclusão, racismo e violência, mas políticas públicas eficientes aliadas a participação das comunidades vão transformando a vida no estuário do rio Hudson…

E por que a aula de geografia? Porque o Bronx também é aqui. Cada cidade de nossa região tem um Bronx para chamar de seu. Com pobreza, violência, descaso dos serviços públicos, preconceito. A cidade não está lá! O governo nunca foi lá! Santa Clara, Caetetuba, Cuiabá, ou simplesmente “os predinho” ou “as casinha”… o Bronx está entre nós. Provavelmente nem o IBGE conhece bem o Bronx, mas os 5% que ganham abaixo de R$ 40,00/dia estão lá! E lutam, batalham, sobrevivem. Reinvenção diária!

O Bronx é estigmatizado pelo preconceito da sociedade: vagabundos, incapazes, bandidos e mundanas, mácula social. Mas a sociedade paga os salários de fome das diaristas e auxiliares de pedreiro, alimenta o tráfico, consome a violência nos noticiários, faz doações para sentir-se melhor na margem “certa” do rio. E tem muita gente que vive do voto ou dízimo destes que não tem (quase) nada!

E o Bronx realiza: faz música, dança, reza e sonha. Costura, cozinha, constrói, desenha e redesenha com pequenos negócios as esperanças de um dia não ser mais Bronx não! E participa, questiona, se incomoda, se organiza como pode! Gritam mais e melhor, porque a surdez da sociedade não os envergonha. Estes brasileiros e brasileiras do Bronx tem sua identidade, um orgulho de ser talvez mais autêntico que a falsa cidadania de muitos frequentadores de shopping.

O filósofo pode até estar certo: não há crise no shopping, e certamente o Bronx é o legado perverso de um país que não se assume desigual e injusto. Por isso trabalhamos na educação de pessoas e comunidades – no pensar, sentir e fazer de todo dia, vamos aprendendo que não há rio sem duas margens. Precisamos mais barqueiros. Mais ciganas analfabetas a ler a mão de Paulo Freire, menos surdez e mais lucidez, menos imagem e mais realidade, menos discurso fastfood e mais consciência social. O todo é o que faz sentido, como lá e cá: a cidade é o Bronx… e o shopping também.

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