A revolução tecnológica tem transformado profundamente as relações de trabalho, e uma das áreas mais impactadas é a do recrutamento e seleção. A adoção de Inteligência Artificial (IA) para analisar currículos e perfis de candidatos, otimizando processos e reduzindo o tempo de contratação, tem se tornado uma prática comum. No entanto, do ponto de vista do Direito do Trabalho brasileiro, essa ferramenta, embora poderosa, não pode ser usada sem limites. O cerne da questão reside na compatibilidade do uso de algoritmos com os princípios constitucionais e trabalhistas que protegem a dignidade da pessoa humana e vedam qualquer forma de discriminação.
Os Desafios Legais e a Proteção Contra a Discriminação
A legislação brasileira, especialmente a Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988), proíbe expressamente a adoção de práticas discriminatórias para fins de acesso ou manutenção de emprego. Esta vedação encontra-se nos objetivos fundamentais da República (art. 3º, IV) e na garantia de que “todos são iguais perante a lei” (art. 5º, caput). A proibição é reforçada por diplomas legais como a Lei nº 9.029/95, que proíbe práticas discriminatórias para acesso à relação de trabalho, e pela Convenção nº 111 da OIT, internalizada no Brasil pelo Decreto nº 62.150/68.
O grande risco do uso de IA é a chamada discriminação algorítmica. Um algoritmo, por mais sofisticado que seja, é treinado com base em dados históricos. Se esses dados refletem vieses discriminatórios preexistentes na sociedade (seja por gênero, raça, idade, religião etc.), o algoritmo pode aprender e replicar esses padrões, rejeitando automaticamente candidatos que não se enquadrem no “perfil ideal” de um grupo demográfico dominante. Juristas como Jorge Cavalcanti Boucinhas Filho alertam para o fato de que a tecnologia, embora neutra em sua essência, pode ser utilizada para perpetuar ou até mesmo intensificar injustiças sociais.
A jurisprudência tem se atentado a essa questão. Embora ainda incipiente, as decisões do Tribunal Superior do Trabalho (TST) e de Tribunais Regionais do Trabalho (TRTs) reforçam a necessidade de que os critérios de seleção sejam objetivos, transparentes e, acima de tudo, não discriminatórios. O ônus da prova de que um processo seletivo não foi discriminatório recai, via de regra, sobre a empresa, que precisará demonstrar a validade e a imparcialidade dos critérios utilizados.
Transparência e o Direito de Explicação
A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) (Lei nº 13.709/2018) acrescenta outra camada de proteção ao tema. O artigo 20 da LGPD garante ao titular dos dados o “direito de solicitar a revisão de decisões tomadas unicamente com base em tratamento automatizado de dados pessoais que afetem seus interesses” (BRASIL, 2018). Isso significa que um candidato rejeitado por um algoritmo pode, em tese, exigir da empresa uma explicação sobre os critérios utilizados. A opacidade dos algoritmos, muitas vezes protegidos como segredo de negócio, entra em conflito direto com este direito.
A doutrina do Direito Digital e Trabalhista tem explorado o “direito à explicação”, que obriga a empresa a tornar compreensíveis as razões por trás da decisão automatizada. Os Autores discutem a necessidade de justificar decisões baseadas em IA para evitar o preconceito e a discriminação, reforçando a aplicabilidade dos princípios constitucionais e da LGPD.
Conclusão
O uso da IA no recrutamento é uma realidade irreversível, mas o seu emprego no Brasil deve ser pautado pela cautela e pelo respeito à legislação. As empresas precisam garantir que seus algoritmos sejam auditáveis, transparentes e, acima de tudo, livres de vieses discriminatórios. O Direito do Trabalho, com o apoio da jurisprudência e da doutrina, tem o papel crucial de fiscalizar e assegurar que a tecnologia sirva como um instrumento de justiça e igualdade, e não como uma ferramenta para perpetuar preconceitos. O futuro do recrutamento é digital, mas a proteção dos direitos fundamentais continua sendo um dever humano.

Especialista em direito do trabalho pela Escola Paulista de Direito – EPD. Especialista em direito desportivo pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo – SP. Cursou direito do trabalho reformado na Fundação Getúlio Vargas – FGV. Bacharel em direito pela Universidade São Francisco – USF. Professor e palestrante de direito do trabalho.

