Uma reflexão sobre o envelhecimento

Há muitos anos o meu amigo Rubens, que beirava os 50, me confidenciava o desejo de possuir na velhice o mínimo necessário, suficiente para viver com dignidade, e que ao longo da vida iniciaria esse desapego material para facilitar a sua passagem. Gosto deste conceito, mas fica uma dúvida – como saber ao certo se estamos adentrando o “último quarto” de nossa existência?

Envelhecer hoje em dia é um desafio mais compreendido pela sociedade e pela ciência – sabemos como nosso organismo se desgasta, sabemos diagnosticar, combater ou retardar doenças degenerativas, e conseguimos conviver com a perda de cognição e memória com estimulação e medicamentos, experimentando em 2022 uma longevidade que nossos ancestrais jamais sonharam em 1900. Só não aprendemos como não morrer, ainda!

590 Queen Elizabeth Stock Vector Illustration and Royalty Free Queen Elizabeth  ClipartA medição do tempo cronológico nem sempre corresponde aos nossos desejos e ações – conheço crianças velhas e idosas jovens; assisto muita gente começar a viver de verdade após os 70 anos, e pessoas com 40 anos definharem suas esperanças e motivações, morrendo em vida. E esse saldo de 25% da vida que nos resta começa aos 45 ou 60? E quando acaba? Imagino quanto tempo a longeva monarca britânica fez a si mesma esta pergunta…

A questão não é o quando, mas sim o como queremos viver nosso último quarto. O envelhecimento deveria trazer amadurecimento e reflexões sobre o sentido da vida que começa a ir embora – o que fizemos, onde “erramos”, as oportunidades aproveitadas e outras nem percebidas, quem ofendemos e quem amamos. Às vezes vem o desejo de retornar à juventude, tentar reparar o passado, realizar um projeto esquecido; outras vezes nem nos damos conta do envelhecimento, e permanecemos ativos em nossas rotinas ou delírios criativos. Será que nos renderemos à “vontade de Deus” (ou aos nossos próprios tropeços), e terminaremos nossos dias em oração para aplacar a doença e o desalento?

O “último quarto” pode ser a reorganização interna do que somos, soma de nossos aprendizados e realizações – tempo de despertar o nosso Ikigai,nossa razão de existir,significando de forma integradanossas vocações, paixões, profissão e contribuições para a sociedade. É tempo de resgatar talentos? Iniciar uma nova carreira? Curtirmos nossa família e amigos com sentimento de dever cumprido? Vamos devolver à comunidade o que recebemos dela, compartilhando conhecimento de forma voluntária? Vamos doar nossos bens e viver uma nomadland trip tardia, ou fervorosamente construir um fantástico mausoléu para que ninguém se lembre de nós?

Nesse último quarto podemos ler todos os livros um dia comprados e nunca lidos, ou guardar apenas os dois ou três que gostamos. Viver de memórias até perdê-las… ou inventar uma nova vida! Podemos ser quem sempre fomos, ou viver novas personas, alguém que sempre sonhamos ser e apenas… ser! É uma fase onde o fazer certamente faz mais sentido que o ter – a capacidade de criar e realizar pode crescer com o amadurecimento, quando nossos medos e ansiedade estão mais administrados e nosso potencial empreendedor se integra à nossa experiência de vida.

No último quarto podemos estar satisfeitos, preenchidos e integrados em nosso mundo, podemos descobrir ou desenvolver nossa espiritualidade (por via das dúvidas), e podemos também desesperar com as insolúveis questões de dinheiro e família. Podemos ainda compreender que só nos restou o tédio ou o amargor da existência, dando adeus ao plano terreno de forma consciente como Godard, ou impetuosamente como Hemingway ou Getúlio Vargas. Tudo depende de como cada um compreende a sua jornada e seu tempo de realização e finitude. Quando vamos? Não sei. O que levaremos? Nada.

Hoje sexagenário, experimento uma divertida contenda com a vida, onde procuro incorporar desafios e realizações para conviver com meu self tradicional e acomodado. Tenho o privilégio de ser pai de uma incrível criança de 11 anos, que desafia minhas supostas convicções e me mantém com um olhar no futuro! Adoro o meu trabalho, o que me ajuda a não desejar aposentadoria, e aprendo todos os dias com pessoas e coletivos, inclusive trabalhando com idosos e idosas em suas jornadas de lazer ou cuidados. E como não sou imortal, lido com muitos desafios de saúde, mas sem o autoflagelo lamuriante da velhice… e continuo boêmio, pensador, poeta, músico e apaixonado por uma boa causa… até quando der.

Do meu amigo Rubens, perdi o rumo – não sei se completou sua jornada ou não, se a simplicidade que desejava o acolheu, ou se mudou de ideia… quem sabe alguma doença incurável antecipou sua velhice idealizada, ou se estará feliz jogando tranca em algum lar da “melhor idade”. Nosso último quarto pode encerrar entre quatro paredes todos nossos sonhos e vitalidade, ou abriremos as pétalas do nosso ikigai em busca da vida plena.

Em resumo, nosso último quarto é cheio de possibilidades!

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