Mesmo com o avanço em padronização das leis, há coexistência entre as duas áreas e ainda gera desafios sobre temas em transações de capital, criptoativos e práticas ESG, conforme aponta especialista da FIPECAFI
Apesar da iniciativa do poder Legislativo em adaptar as normas contábeis brasileiras à adoção das IFRS, processo iniciado com a promulgação da Lei nº 11.638/2007 e culminando na extinção do Regime Tributário de Transição (RTT) pela Lei nº 12.973/2014, muitas controvérsias jurídico-contábeis ainda persistem. Isso se deve, em primeiro lugar, ao fato de que contabilidade e direito têm objetivos distintos e, consequentemente, adotam critérios diversos para o reconhecimento de receitas e despesas. Entre elas, segundo a análise do especialista da FIPECAFI, são as diferenças entre o lucro contábil e o real, resultantes dos ajustes exigidos pela legislação tributária.
“Fica evidente que muitos temas não foram tratados de forma explícita na legislação, gerando controvérsias quanto ao seu tratamento tributário, como ocorre nas transações de capital. Além disso, outras controvérsias surgem da evolução constante da contabilidade, do direito e dos eventos econômicos, como demonstram os novos pronunciamentos contábeis sobre receita e arrendamento mercantil, a adoção das normas do Pilar 2 da OCDE, o uso crescente de criptoativos, e os debates sobre a implementação de práticas ESG nas empresas. Esses fatores combinados mantêm vivas as discussões na seara jurídico-contábil, envolvendo temas como combinações de negócios, subvenções para investimento, preços de transferência e fundos de investimento, entre outros“, alerta o especialista em Contabilidade e Direito da FIPECAFI, Alexandre Evaristo.
O especialista ainda ressalta que, embora seja difícil pontuar as controvérsias resolvidas, é inegável que a adoção do novo padrão contábil aprimorou a relação entre o direito e a contabilidade no Brasil. No passado, os registros contábeis eram fortemente influenciados pela legislação tributária, realidade que mudou com a adoção de uma sistemática em que os registros contábeis seguem as normas contábeis vigentes, e os ajustes necessários para o cálculo do lucro tributário são realizados em livros auxiliares.
“Vale lembrar que, hoje, as discussões sobre combinações de negócios como ágio, operações entre partes dependentes e laudos de avaliação, são mais maduras e muitas controvérsias antigas agora estão mais bem reguladas. No entanto, as discussões continuam dinâmicas, com algumas ainda em aberto, por exemplo as relativas a subvenções, e novas questões surgindo com a evolução da sociedade, como no caso das criptomoedas“, afirma.
Custos tributários
A complexibilidade do sistema tributário também pode ajudar na gestão contábil e gerar controvérsias. Ainda mais quando o sistema do país é complexo na criação e edição de padrões. Um estudo do Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBPT) mostra que o Brasil ganha 860 normas diariamente, sendo 7,8 milhões delas editadas, 517.388 em tributos. O valor pode chegar a R$ 270 bilhões para empresas.
A carga tributária é um dos maiores entraves ao crescimento econômico do país. O estudo do IBPT ainda destaca que 6,61% de todas as normas editadas nos últimos 36 anos de Constituição estão relacionadas a tributos. Isso significa que foram publicadas, em média, 39 regulações em tributos por dia ou 1,6 por hora.
A adoção das IFRS no Brasil alinhou o país sobre as melhores práticas contábeis internacionais, mas, também, evidenciou a harmonia entre a cultura jurídica baseada em legislação expressa e os pronunciamentos contábeis emitidos pelo CPC, o que gera controvérsias entre contadores e juristas.
“Esse alinhamento também trouxe desafios para as companhias de menor porte que, muitas vezes, não possuem estrutura para lidar com normas complexas, levando à criação de condições simplificadas para facilitar o processo. Apesar desses desafios, a adoção dos padrões internacionais é vista como um progresso, refletindo o avanço nas práticas contábeis e nas dinâmicas econômicas brasileiras“, explica Evaristo.
Os ativos
A principal questão que envolve os ativos diz respeito ao seu reconhecimento e mensuração. Em primeiro lugar, na visão do especialista, há debates sobre a possibilidade de reconhecimento de determinados investimentos e suas consequências tributárias, como no caso dos créditos em tributos oriundos de decisões judiciais favoráveis aos contribuintes. “Em segundo lugar, há intensa polêmica sobre a mensuração dessas aplicações, especialmente na avaliação pelo valor justo ou na mensuração de capital decorrentes de combinações de negócios, como ocorre com o ágio“, comenta Alexandre Evaristo.
O especialista ainda relembra que a própria diferença de objetivos entre a contabilidade e o direito é uma fonte inevitável de divergências e, apesar dos esforços de legisladores e profissionais de ambas as áreas, é de se esperar que as discussões persistam, considerando a complexidade das relações econômicas. Mesmo que, embora a evolução tecnológica possa facilitar processos e procedimentos contábeis, ela também reflete a complexidade crescente da economia, que está em constante transformação. Essas mudanças nas relações sociais, segundo Evaristo, apresentam desafios contínuos para ambos, tornando factível esperar o surgimento de novas controvérsias ao longo dos anos.
“A área de interseção entre o direito e a contabilidade é extremamente promissora e carece de profissionais especializados, apresentando um campo fértil para o crescimento profissional. O Seminário e o livro Controvérsias Jurídico-Contábeis são dedicados justamente a esses profissionais, trazendo discussões essenciais para quem deseja se aprofundar nesse universo“, finaliza Evaristo.